76 anos de saudade ou o adeus de um campeão
Nos dias que se seguiram, a notícia da sua morte surge nas capas dos jornais; ao seu funeral acorre uma infindável multidão; de todo o país e do estrangeiro chegam manifestações de pesar. Mais tarde, erguem um monumento em sua memória e uma rua de Lisboa passa a ter o seu nome. Quem era, afinal?
Era José Manuel Soares, o “Pepe”, um dos melhores jogadores de sempre do Belenenses e da história do futebol português.
As origens
José Manuel Soares Louro nasceu a 30 de Janeiro de 1908 (embora certas fontes apontem o dia 29), filho de Maria José da Silva Soares e de Julião Soares Gomes. O local terá sido a casa da família, na Rua do Embaixador, nº17, em Belém (outras fontes referem – talvez por lapso – que teria nascido na Covilhã, terra de origem da família?).
Foi em Belém que cresceu o “Pepe” (diminutivo de José - talvez por influência dos muitos galegos que viviam na zona), sujeito a enormes vicissitudes, no seio de uma família pobre, num bairro pobre. O pai vendia hortaliça com uma carroça, de porta em porta. A mãe tinha uma banca de fruta no antigo Mercado de Belém (já desaparecido, situava-se em frente da actual Rua Vieira Portuense, sendo contíguo o antigo Campo do Pau do Fio). E aqueles parcos rendimentos serviam para sustentar, para além do Pepe, mais cinco irmãos: Ana (a mais velha, que era quem tomava conta da casa e dos outros), Rogério, Suzana e ainda outros dois (mais novos).
Na mesma Rua do Embaixador, porém, tinha o Pepe ilustres vizinhos. Também de famílias humildes, mas que se iam tornando famosos por todo o país, graças ao que parecia uma brincadeira de crianças, mas que já animava multidões: o futebol. Ali viviam alguns dos melhores futebolistas, dos tempos do Sport Lisboa, das Terras do Desembargador (logo acima da rua)… e dos primeiros anos do Belenenses. Entre os quais, Artur José Pereira, então o melhor jogador de todo o País e principal fundador do Clube, cuja fama por certo não deixaria indiferente a miudagem da rua. Recorde-se que à data da fundação do Belenenses tinha o Pepe 11 anos.
Não terá sido assim surpreendente que José Manuel Soares, como tantos outros rapazes, viesse a engrossar as fileiras de jovens promessas do novo Clube (de antigas tradições). Em 1924, com 16 anos, começou a jogar na 4ª “categoria” (escalões jovens). A 18 de Outubro desse mesmo ano, foi promovido directamente à 2ª categoria (logo abaixo da equipa de “honra”), o que demonstra bem a sua qualidade.
A estreia e conquista do primeiro Campeonato de Lisboa
O grande momento, a estreia pela equipa principal, aconteceu a 28 de Fevereiro de 1926, tinha o Pepe apenas 18 anos. É bastante conhecido o episódio, em que o capitão Augusto Silva chamou o rapazinho para entrar em campo, logo contra o Benfica. Mas já lá vamos. Menos conhecida é a verdadeira razão da chamada de José Manuel Soares à 1ª categoria. Assim a revelou Joaquim Dias, um dos sócios fundadores, em entrevista ao Jornal do Belenenses:
“- O Artur José Pereira, depois de aturada conversa comigo, na altura tesoureiro do clube, deliberou tomar tal decisão [de incluir o Pepe na 1ª categoria], apesar do receio que tinha em que a massa associativa não gostasse, devido à pouca idade do inesquecível atleta.”
Assim ficamos a saber que o grande mestre do futebol português, Artur José Pereira, que ajudou a formar tantos jogadores de excelência (até finais dos anos 30), também esteve ligado à progressão do Pepe - embora discretamente, como lhe era habitual.
A equipa de 1926
Regressando ao dia 28 de Fevereiro de 1926, tratava-se da 11ª jornada do importantíssimo Campeonato de Lisboa (onde estavam as melhores equipas e que chegou a servir como “poule” indirecta para o Campeonato de Portugal). Como em épocas anteriores (nomeadamente, a de 1924/25), o Belenenses tinha boas hipóteses de conquistar aquele título - seria a primeira vez nos seus 7 anos de história. Já havia amealhado 6 vitórias, 2 empates (com Sporting e Benfica, na 1ª volta) e apenas tinha sofrido 2 derrotas (com o Setúbal – jogo altamente polémico – e com o Carcavelinhos). O jogo anterior tinha sido, precisamente, a derrota com o Carcavelinhos (que por fusão com o União de Lisboa daria origem ao Atlético).Os nervos estavam à flor da pele. Na verdade, era um momento crucial para a vida do Belenenses. Era tempo de saber se o Clube, fundado pelos melhores futebolistas, podia afinal continuar entre os melhores, conquistando um grande título. E era tempo de confirmar se a seguir à primeira geração (cujos últimos representantes, Alberto e Joaquim Rio, se retiraram por esta altura) já havia uma segunda geração de jogadores, também eles, entre os melhores.
Para descrever o que se passou naquele Domingo, aqui fica o relato compilado por Acácio Rosa:
“O Belenenses a um quarto de hora do fim, perdia por 1-4!
Campo das Amoreiras.
Belenenses-Benfica!
Durante setenta e cinco minutos só dois jogadores não perderam a fé ante a descrença geral. Augusto Silva – o mais velho – e Pepe – o mais novo.
Antes do encontro, corriam rumores de que alguns dos nossos jogadores, por desinteligências internas, não jogariam.
A Direcção delegou em Augusto Silva plenos poderes para a escolha da equipa.
E, Augusto Silva escolheu os onze jogadores e para a meia esquerda foi Pepe! Vinha dos infantis [como se designavam as camadas jovens em geral]…
Mas, a um minuto do fim, com o resultado já em 4-4, a vontade indómita de todos e os ataques sucessivos, o adversário comete falta na grande área. Penalty!
Ninguém dos belenenses queria ser o responsável pela execução da falta.
Augusto Silva, resolutamente, aponta para o Pepe e diz-lhe: “o penalty marcas tu!”
Pepe, envergonhado e receoso, apenas respondeu:
- Eu, Sr. Augusto????
- Sim, marcas tu!
E Pepe marcou o golo e o Belenenses venceu o Benfica por 5 a 4, para o Campeonato de Lisboa.”
Foi o delírio entre as “hostes” de Belém - Pepe, o “miúdo”, era um novo herói! E que melhor ocasião – tomando parte de um dos míticos “quartos de hora à Belém”!
Ficava aberto o caminho para a conquista do primeiro Campeonato de Lisboa (pela primeira vez disputado por 8 equipas, em vez de 5 – o que valorizou ainda mais aquele triunfo). Para tal bastaram as vitórias sobre o Império (3-0) e o Sporting (1-0), ficando tudo resolvido para a última jornada, em que perdemos por 4-1 com o União de Lisboa, resultado já sem importância.
Seguiu-se a disputa do Campeonato de Portugal, que pela primeira vez reunia os vencedores dos campeonatos regionais – isto é, também passava a incluir mais equipas.
E, para primeira participação do Belenenses… nada mal: depois de vencer o GS “Os Leões” por 7-2, o Espinho por 4-1, e o difícil Olhanense por 2-1, chegámos à final, a disputar com o Marítimo.
O jogo foi no campo do Ameal, no Porto, a 6 de Junho de 1926, e José Manuel Soares fazia parte do “onze”.
Mas o jogo não acabou bem… ou melhor, nem acabou quando devia (aos 20 minutos da 2ª parte)! Depois de acontecimentos estranhos – antes e durante o jogo, incluindo a animosidade dos portuenses – o Belenenses perdeu por 2-0...
A época de 1926/27 e a conquista do primeiro Campeonato de Portugal
A época seguinte, de 1926/27, ficaria para a História do Clube como uma das melhores.
No Campeonato de Lisboa ficámos em 2ª lugar, perdendo o título para a também fortíssima formação do Vitória de Setúbal (também curiosamente foi a última vez que o Vitória disputou o Campeonato de Lisboa, devido à criação da Associação de Futebol de Setúbal). O Pepe alinhou em 9 dos 14 jogos disputados.
Estreia Internacional de Pepe
A 16 de Março de 1927, no campo do Lumiar, deu-se a estreia de José Manuel Soares pela Selecção Nacional. Frente à poderosíssima França (para “desforra” da derrota de Abril de 1926, em Toulouse, por 4-2), Pepe marcou 2 golos, contribuindo para a vitória (4-0). Saiu em ombros, levado pela multidão. O Pepe já não era só um herói dos Belenenses, também já era um herói nacional!
Sobre esta estreia e a “desforra”, escreveu Ricardo Ornellas posteriormente:
“E que desforra e que dois rapazes que se estrearam! Dois Zés Manéis, o Soares, “Pepe”, e o Martins, o de ponta esquerda - um «gravoche» e endiabrado e o outro, cheio de boas maneiras.
Dividiram os golos: cada um fez dois. Um o Pepe, foi garoto…
Depois do encontro disse que, no segundo dele «palavra de honra»
que não queria mandar a bola à baliza; ia só a fazer uma passagem... Não
importa nada, claro, que a crítica tivesse considerado golo uma maravilha
de execução; era-se menos exigente...”
A 2ª internacionalização terá ocorrido em Itália (derrota por 1-3). A 29 de Maio de 1927, a terceira (derrota em Espanha por 2-0).
A edição do Campeonato de Portugal para 1926/27 seria, sem dúvida, a mais difícil de todas até então disputadas. Poderiam participar todas as equipas que o desejassem fazer!
Depois de levar de vencida os Leões de Santar (9-1), o poderoso FC Porto (3-2), o Marítimo (8-1, numa desforra saborosa frente ao “campeão”!) e o Benfica (2-0), o Belenenses conseguiu de novo o lugar na final (pela 2ª vez… na 2ª participação!).
O adversário foi o Vitória de Setúbal , pelo que estava também em causa uma “desforra” pelo sucedido no Campeonato de Lisboa.
No jogo realizado a 12 de Junho de 1927, no Stadium do Lumiar, o Belenenses venceu por 3-0 e sagrou-se assim – pela primeira vez – Campeão de Portugal! E o Pepe, titular, conseguiu assim o seu primeiro título nacional. Não marcou nenhum dos 3 golos (um Augusto Silva e dois de Silva Marques), mas ajudou no primeiro, com uma simulação que enganou a defesa adversária e deixou a baliza à mercê de Augusto Silva.
No dia 9 de Julho de 1927 teve lugar um banquete de homenagem aos campeões, entre os quais Pepe, no Casino S. José de Ribamar (antigo palácio Ribamar), em Algés. Pouco depois Pepe (como os restantes) seria elevado a Sócio de Mérito do Clube de Futebol “Os Belenenses”, com apenas 19 anos de idade (era o sócio nº 1784)! Aconteceu na Assembleia Geral de 8 de Agosto de 1927.
A época de 1927/28 e a epopeia dos Jogos Olímpicos
Na época de 1927/28 o Belenenses viveu mais alguns momentos inesquecíveis da sua história. Afirmou-se como um clube pujante, vitorioso e com um futuro auspicioso.
A 29 de Janeiro de 1928, em jogo a contar para o Campeonato de Lisboa (10ª jornada), foi inaugurado o magnífico campo das Salésias, o seu primeiro recinto próprio apto para as competições oficiais! Mal sabia o Pepe que esse mesmo campo viria a ser baptizado com o seu nome…
Para o Campeonato de Lisboa de 1927/28 (em que ficámos em 3º lugar) o Pepe realizou 11 jogos, ajudando a que tivéssemos o melhor ataque da competição, com 42 golos.
Pelo meio, a conquista da Taça de “Natal” (frente a Benfica e Setúbal) e da Taça Ademar de Melo (a duas mãos, com o Boavista).
Para o Campeonato de Portugal, depois de eliminarmos o Luso de Beja (7-1) e o Leça (8-1), fomos eliminados pelo Vitória de Setúbal (1-4), em mais um estranho jogo, disputado no campo do Benfica (cujos sócios, presentes em força, estavam contra nós). O Pepe disputou os 3 jogos em questão.
Mas um dos momentos mais altos da carreira de Pepe foi, sem dúvida, a participação nos Jogos Olímpicos de Amsterdão, em 1928.
Depois de boas prestações em jogos particulares, a Federação Portuguesa de Futebol decidira inscrever a Selecção no Torneio Olímpico de futebol. Para a viagem até Amsterdão, os seleccionadores Cândido de Oliveira e Ricardo Ornelas não hesitaram em escolher os Belenenses José Manuel Soares, Augusto Silva, César de Matos e Alfredo Ramos (embora este não viesse a participar em qualquer jogo). No total, quatro jogadores do Belenenses, que era assim o clube mais representado na Selecção!
Os jogos particulares em que José Manuel Soares havia alinhado foram com a fortíssima Argentina, em 1 de Abril de 1928 (empate a 0); com a Itália, em 15 de Abril de 1928 (estrondosa vitória por 4-1) e com a França, a 29 de Abril de 1928 (brilhante empate a 1 bola). De permeio, a presença num Lisboa-Algarve (8-0) e num Lisboa-Madrid (2-2).
De salientar que em todos estes jogos Pepe alinhou como “interior” esquerdo…
Amsterdão: Portugal - Chile
Já em Amsterdão, a estreia foi excelente. A 27 de Maio de 1928, frente à duríssima selecção do Chile, naquele que foi o primeiro jogo da Selecção Nacional em competições oficiais, Pepe marcou 2 golos, contribuindo decisivamente para a vitória (4-2). Vitória essa que não foi nada fácil. Começaram os chilenos em vantagem, com dois golos, enquanto Portugal ficava momentaneamente reduzido a 10 (por lesão de um jogador). No segundo tempo conseguimos a reviravolta, “num estrondoso alarde de valentia, ânimo, coragem e consistência técnica”.
No segundo jogo (a 29 de Maio de 1928), nova vitória, frente à Jugoslávia, com uma exibição histórica de Augusto Silva, que marcou um golo e foi levado em ombros pelos próprios holandeses.
Terminou a “aventura” com uma derrota frente ao Egipto (3 de Junho de 1928), numa conjunção de má arbitragem (incluindo um golo mal anulado) e excesso de confiança.
No entanto, o País rendeu-se aos heróis de Amsterdão, os “Leões de Amsterdão” (ou ainda “Tigres”, uma versão menos “leonina”). Entre eles, os três Belenenses que foram titulares em todos os jogos, sendo que Pepe alinhou sempre como “interior”… direito.
E assim José Manuel Soares ficou também para a história, como atleta olímpico!
Já depois dos Jogos Olímpicos, o Belenenses efectuou a sua primeira visita à Madeira, depois de insistentes convites dos madeirenses. O Pepe alinhou em todos os jogos ali realizados (5).
Finalmente, em 11 de Novembro de 1928, foram homenageados na sede do Clube os nossos “leões de Amsterdão” (Pepe, Augusto Silva, César de Matos e Alfredo Ramos), tendo sido descerrados os seus retratos pelo Presidente da Associação de Futebol de Lisboa.
A época de 1928/29 e a supremacia - as conquistas do segundo Campeonato de Lisboa e do segundo Campeonato de Portugal
Seguiu-se a época de 1928/29, repleta de glória. Talvez a melhor de sempre!
E foi bastante atarefada… e atribulada.
Começou com o Torneio de Preparação, envolvendo os primeiros 4 classificados do Campeonato de Lisboa. A 23 de Setembro de 1928 (data de aniversário) vencemos o União de Lisboa por 2-1, e na final, a 30 de Setembro de 1928, empatámos a zero com o Sporting. Devia ter sido jogado um período suplementar de 30 minutos, mas os sportinguistas não o quiseram. Estranhamente, não foi atribuída a vitória no torneio…
O Pepe foi titular nos dois jogos.
Seguiu-se um jogo frente ao Setúbal, que terminou em empate (3-3).
Depois iniciou-se o Campeonato de Lisboa 1928/29, em que alguns jogadores “azuis” foram bastante penalizados pela violência dos adversários. Pepe, com um entorse; César de Matos, chegou a fracturar a perna direita; e Rodolfo Faroleiro, com forte contusão que o obrigou a perder boa parte da 1ª volta.
Chegados a Dezembro, o Belenenses contava já com 5 vitórias, um empate e uma derrota. Estava no bom caminho…
De realçar, as vitórias frente ao União de Lisboa (3-2), Sporting (3-1) e Carcavelinhos (3-1).
Entretanto, a 2 de Dezembro de 1928, Pepe participara no primeiro jogo Paris-Lisboa (1-2).
Aproveitando o interregno natalício, a 23 e 25 de Dezembro de 1928 o Belenenses disputou dois jogos com o FC Porto, ambos no Porto, conseguindo uma vitória no primeiro (2-1), perdendo no segundo (2-3).
Em Janeiro de 1929 Lisboa recebeu a grande equipa do Ferencváros, campeão da Hungria e vencedor da Taça da Europa Central (disputada pelos campeões da Hungria, Áustria e Checoslováquia), que para mais havia derrotado pouco antes o Blackburn, vencedor da Taça de Inglaterra, por expressivos 6-1. Face a tal poderio, sucumbiu o Belenenses, mesmo com Pepe, por 6-0 (a 1 de Janeiro).
Seguiu-se a Taça Associação (da AF Lisboa), na qual Belenenses foi eliminado no primeiro jogo (derrota por 2-1 frente ao União de Lisboa, a 13 de Janeiro de 1929).
A 31 de Janeiro de 1929 realizou-se um jogo em benefício do Asilo Nun’Álvares, em virtude do contrato de cedência do terreno das Salésias. O Belenenses venceu o Vitória de Setúbal por 3-1. No encontro de retribuição, em Setúbal (a 3 de Fevereiro de 1929), os vitorianos conseguiram uma vitória farta em golos (6-1).
Contudo, os resultados menos conseguidos desta altura não afectaram o percurso do Belenenses, destinado a mais altos “vôos”.
Logo no recomeço do Campeonato de Lisboa (a 17 de Fevereiro de 1929) o Belenenses levou de vencida o Benfica por 6-3!
E embora na jornada seguinte o União de Lisboa levasse a melhor (4-2, a 24 de Fevereiro), em seguida veio nova vitória frente ao Sporting (1-0, a 10 de Março de 1929).
Aproveitando novo interregno do Campeonato, o Belenenses efectuou nova digressão, a Marrocos (à parte que era colónia francesa – a restante era espanhola), a convite do Clube Português de Marrocos.
Pepe alinhou nos 3 jogos, em que o Belenenses deixou excelente impressão. Como curiosidade, foi Artur José Pereira (que integrava a comitiva) que a convite dos próprios marroquinos arbitrou as partidas em causa…
Eis os resultados e algumas das reacções da imprensa local:
31 de Março de 1929 – Belenenses 1, Union Sportive Marocaine 1
Do jornal “La Vigie”: “os portugueses mostraram-se melhores footballers que os nossos locais e o resultado do encontro, um empate, não representa de nenhuma maneira a fisionomia da partida”
1 de Abril de 1929 – Belenenses 5, Olympique de Rabat (Olympique Marocain) 1
Do “La presse”: “A partida disputada no Estádio Municipal de Aguedel foi esplêndida. Os “azuis” de princípio a fim mostraram a sua táctica impecável.”
2 de Abril de 1929 – Belenenses 4, Club de Football de Fez, 0
Ainda antes desta digressão, Pepe participou em dois encontros da Selecção Nacional (derrota em Espanha por 5-0, a 17 de Março, e derrota em França por 2-0, a 24 de Março) e num encontro “Norte-Sul” que os “sulistas” (com Pepe) venceram por 4-1 (a 3 de Março).
De regresso a Lisboa, regressou também o Campeonato (o de Lisboa, claro). Faltavam apenas quatro jornadas para o final, e nada estava decidido. O Belenenses partia com 7 vitórias, 1 empate e 2 derrotas… mas Benfica, Carcavelinhos e União de Lisboa (e, com hipóteses mais remotas, o Sporting) estavam à espreita.
Contudo, fomos irrepreensíveis… e imbatíveis. A 14 de Abril de 1929, vitória por 3-2 frente ao Palhavã (sucessor do Império); a 21 de Abril, vitória por 8-0 (!) sobre o Casa Pia; a 28 de Abril, nova goleada, 8-0 sobre o Bom Sucesso; e a 12 de Maio de 1929, o jogo do título, em que o Belenenses derrotou o Carcavelinhos por 2-0!
Estava assim conquistado o segundo Campeonato de Lisboa da história do Belenenses!
E a José Manuel Soares coube boa parte dos 54 golos marcados (embora a época seguinte viesse a ser mais espectacular ainda, como veremos), a que corresponderam 37 pontos (recorde-se que para o Campeonato de Lisboa, nestas épocas, a pontuação por jogo era a seguinte: vitória – 3 pontos; empate – 2 pontos; derrota – 1 ponto).
A 5 de Maio de 1929 Pepe participou em mais um encontro “inter-cidades”, entre a selecção militar de Lisboa e a de Madrid (derrota por 2-3).
Dois dias depois (e ainda antes do final do Campeonato de Lisboa, portanto) começaria o Campeonato de Portugal. Seria o Belenenses capaz de conquistar a “dobradinha” (Campeonato de Lisboa + Campeonato de Portugal), que só o Sporting conseguira, por uma vez, em 1922/23? Seria o Belenenses o primeiro clube de Lisboa a conseguir conquistar dois campeonatos de Portugal? (recorde-se que à época o Benfica não havia conquistado nenhum) Seria também o Belenenses apenas o segundo clube a nível nacional a conseguir conquistar dois campeonatos de Portugal? (embora o Porto, o primeiro, tivesse obtido o seu primeiro título na 1ª edição, limitada a Porto… e Sporting).
A primeira eliminatória do Belenenses até foi “fácil”. O adversário (Leiria) não compareceu…
Ainda antes da eliminatória seguinte houve novo Porto-Lisboa, em que o Pepe esteve presente (19 de Maio de 1929, terminando com vitória dos portuenses por 4-3).
A 26 de Maio de 1929, para os oitavos de final do Campeonato de Portugal, o Belenenses eliminou um dos principais concorrentes, vencendo o Benfica por 3-2. Neste desafio o Pepe sofreu entrada duríssima, logo aos 5 minutos, e o Belenenses esteve praticamente o jogo inteiro com apenas 10 elementos!.
A 2 de Junho, nos quartos de final, foi a vez do difícil Carcavelinhos ficar pelo caminho, por 3-1.
O jogo das meias finais, frente ao Setúbal, foi bem difícil, como seria de prever. A 9 de Junho as equipas não foram além de um empate. Mas o jogo de desempate aconteceu logo no dia seguinte (aproveitando o facto de ser feriado), levando o Belenenses a melhor (2-0). O curioso é que ambos os jogos foram em Setúbal, tendo o Belenenses repousado na praia de Albarraquel de um dia para o outro… e aproveitou para incluir o Pepe no 2ª jogo, porque não tinha sido possível no primeiro!
Chegou então a final, realizada a 16 de Junho de 1929, no campo da Palhavã. O adversário era o complicado União de Lisboa, que no entanto não resistiu à superioridade “azul”. Vencemos por 2-1! Um clube com pouco menos que 10 anos de vida, de novo Campeão de Portugal!
Três dias depois, a 19 de Junho, a Direcção do Clube manifesta o louvor aos “duplos” campeões, incluindo o Pepe (e o próprio Artur José Pereira, que era o treinador!).
De realçar o número de jogos disputados nesta época, em especial pelo Pepe (37!). Ao nível de um jogador profissional dos nossos dias…
A época de 1929/30, os "records" e o terceiro Campeonato de Lisboa
A época seguinte (1929/30) viria a ser talvez a melhor época de sempre de José Manuel Soares, que estava ainda mais “maduro”, hábil e astuto. Ele que de aparência nunca deixara de ser um rapazola.
Integrado nas festas do 10º Aniversário do Clube, disputou-se um Belenenses-Barreirense, com derrota por 3-5.
Seguiu-se a Taça Preparação, com uma vitória por 6-2 frente ao Carcavelinhos (22 de Setembro de 1929) e um empate a 3 bolas com o Benfica (a 29 de Setembro de 1929).
O Campeonato de Lisboa, iniciado poucos dias depois, ficou marcado por records… do Belenenses, e do Pepe em especial.
A 27 de Dezembro de 1929, logo na 2ª jornada, o Belenenses venceu o Bom Sucesso por 12 golos a 1, dos quais José Manuel Soares marcou 10! Este é, até hoje, um record imbatido em competições oficiais. Mas vejamos a tabela completa de resultados, onde não faltam os golos (mais que literalmente!):
Casa Pia: 9-1 e 6-1
Bom Sucesso: 12-1 e 11-0
Chelas: 6-1 e 5-1
Benfica: 1-3 e 1-2
União de Lisboa: 7-1 e 7-3
Carcavelinhos: 4-2 e 5-1
Sporting: 1-0 e 4-2
E assim foi conquistado o terceiro título de Lisboa, com a espectacular marca de 79 golos – “record” imbatido da competição.
Por seu turno, Pepe (que foi totalista) marcara 36 golos no campeonato, tornando-se no melhor marcador de sempre; e os 61 golos no total da época, eram também “record”!
A nível de representações internacionais, a época também foi fantástica para José Manuel Soares.
Em 6 de Outubro de 1929, alinhou por Lisboa na vitória por 3-2 frente à selecção de Sevilha. A 1 de Dezembro de 1929, um resultado menos feliz na Selecção Nacional, em Itália (derrota por 6-1).
Nos dois importantes jogos que se seguiram, Pepe foi a estrela. A 12 de Janeiro de 1930 foi um golo seu que deu a vitória frente à poderosa Checoslováquia, num jogo disputado em Lisboa. E a 23 de Fevereiro de 1930, em jogo disputado no Porto, a Selecção Nacional venceu a grandiosa França por 2-0… com dois golos do Pepe!
Resumindo aqueles excelentes resultados, escreveu posteriormente Ricardo Ornelas:
“Duas vitórias seguidas em casa: 1-0, contra a Checoslováquia em Lisboa, à custa dum Roquete enorme e quando aparecia, como capitão um Serra e Moura, inteligente e brioso, cedo levado pela morte; e 2-0 contra a França, no Porto, num desafio em
que Carlos Alves, o das luvas [pai de João Alves], e mais o Pépe, o da boina, encheram o campo”.
Na época de 1929/30 Pepe participou ainda num “Norte-Sul” (a 3 de Novembro de 1929, ganho pelos “sulistas” por 0-2) e num “Lisboa-Porto” militar (venceram os de Lisboa por 5-0, a 20 de Abril de 1930).
A 6 de Abril de 1930 decorreu no Hotel Duas Nações um banquete de homenagem aos campeões de Lisboa. E os campeões eram bastantes – não só da primeira categoria: o Belenenses conquistara o título lisboeta nas categorias de honra (1ª), reservas (2ª) e 2ª categoria (3ª), algo que nenhum clube conseguira até então!
Para além disso, o Belenenses era também o clube com o maior número de jogadores em representação na Selecção Nacional e Selecções Regionais!
O Campeonato de Portugal de 1929/30, no entanto, não viria a ser feliz para as nossas cores.
O formato foi alterado, pois a partir dos oitavos de final as eliminatórias eram decididas a duas “mãos”.
Começámos bem, ao derrotar o Olhanense por 6-0. Na eliminatória seguinte, dos oitavos, empatámos duas vezes com o FC Porto (2-2 e 3-3). O jogo de desempate, em Santarém, ditou a vitória do Belenenses por 2-1.
Nos quartos de final eliminámos o Marítimo, depois de um “nulo” seguido de uma vitória por 2-1.
O Belenenses “caíu” na meia-final, frente ao Barreirense, de forma invulgar e polémica. Depois de um empate (1-1), ficou apurado o Barreirense graças a uma vitória por 3-2 no 2º jogo… sendo que o 3º e decisivo tento foi um auto-golo de um dos nossos…
A polémica “estalou” quando o Belenenses denunciou a inscrição na equipa do Barreiro de um jogador residente na Ajuda (e que por curiosidade também já jogara pelo Belenenses). Pelos regulamentos, ao que parece, os jogadores tinham que residir no distrito da sua equipa. No entanto, não nos foi dada razão (mesmo com recurso ao poder judicial, já então!). Em protesto, Augusto Silva, César de Matos e o “nosso” José Manuel Soares pediram escusa à Federação para o jogo de 8 de Junho de 1930, frente à Bélgica. E, com efeito, não jogaram. Assim sendo, o memorável jogo contra a França acabou por ser o último jogo de José Manuel Soares pela Selecção Nacional…
A época de 1930/31, a última
A época de 1930/31 foi de certa forma “atípica” para os padrões do Belenenses à época de José Manuel Soares. Com efeito, desde a estreia deste na 1ª equipa, só numa época o Belenenses não conseguira conquistar um dos dois grandes títulos (Campeonatos de Lisboa e de Portugal). Nas outras quatro foram conquistados 3 Campeonatos de Lisboa e 2 Campeonatos de Portugal…
Naquela época, porém, o Belenenses ficou em “branco”.
Até começámos bem, com a conquista da Taça de Preparação, vencendo na final o Benfica por 3-2 (depois de eliminar Sporting e Casa Pia).
A vingança “encarnada” chegou a 12 de Outubro, vencendo o jogo de “abertura” por 3-1.
A carreira no Campeonato de Lisboa, em bom rigor, também foi bastante boa (apesar de não termos conquistado o título). O Belenenses terminou em 2º lugar, com 11 vitórias, 1 empate (Sporting) e apenas uma derrota (União de Lisboa)… a um ponto apenas do Sporting, que sagrou-se campeão…
Sporting: 1-0 e 2-2
Benfica: 4-2 e 4-1
União Lisboa: 2-1 e 1-2
Chelas: 6-1 e 4-1
Bom Sucesso: 6-0 e 4-0
Carcavelinhos: 6-1 e 4-0
Casa Pia: 2-2 e 1-0
Repare-se que o Belenenses, com 47 golos, teve o melhor ataque no torneio, uma vez mais…
Ainda em 1930 Pepe participou noutros desafios particulares:
2 de Novembro: Belenenses 4, Carcavelinhos 0 – jogo de beneficência em favor do sanatório do Outão
14 de Dezembro: Belenenses 4, Benfica 2
29 de Dezembro: Belenenses 4, União de Lisboa 2 – jogo de beneficência em favor do Asilo Nun’Álvares, nos cumprimento do contrato de cedência dos terrenos das Salésias.
Em 1931, outros jogos ainda de carácter particular:
31 de Janeiro: Belenenses 3, União de Coimbra 1 – jogo realizado em Coimbra
1 de Março: União de Lisboa 1, Belenenses 3 – jogo comemorativo do 21º aniversário do União de Lisboa
29 de Março: Belenenses 2, Barreirense 2
5 de Abril: Belenenses 1, União de Lisboa 2 – jogo a favor da Federação Portuguesa de Tiro
15 de Maio: Belenenses 1, Misto do Sporting, União de Lisboa e Barreiro 2 – jogo a favor do antigo árbitro Alfredo Pedroso
31 de Maio: Belenenses 4, Boavista 2
10 de Junho: Belenenses 0, Barreirense 2 – disputa da Taça Caridade, que também serviu para fazer esquecer definitivamente os “atritos” da época anterior entre os clubes em causa…
Entretanto, a 22 de Março de 1931 o Belenenses estreou-se na Taça “Lisboa”… e não viria a participar no Campeonato de Portugal dessa mesma época…
Mais um rocambolesco episódio (não é só nos dias de hoje) esteve na origem de tal facto.
Parece que, a propósito de uma visita do Vitória de Setúbal ao Brasil, surgiu um violento diferendo entre a Associação de Futebol de Lisboa, por um lado, e a Federação Portuguesa de Futebol, mais as Associações de Futebol de Setúbal, Porto e Algarve, por outro. Como resultado, a AF Lisboa proibiu todos os seus filiados de realizarem desafios com clubes daquelas associações, o que na prática ditaria a desistência de todas as equipas de Lisboa de participarem Campeonato de Portugal. E, com efeito, Belenenses, Sporting, Carcavelinhos e União de Lisboa não participaram no Campeonato de 1930/31. Os únicos a “furarem” o acordo foram o Benfica (que já agora queria repetir o título, conquistado pela primeira vez apenas na época anterior) e o Casa Pia (em simpatia com o Benfica). Curioso é o facto de que duas das mais fortes formações da própria Associação de Futebol de Setúbal, o Barreirense e o Luso do Barreiro, também não terem participado…
Em compensação, a Associação de Futebol de Lisboa decidiu oferecer a referida Taça Lisboa, a ser disputada pelos clubes que com ela se solidarizaram no conflito com a FPF (incluindo clubes que poderiam ter beneficiado da desistência de outros, mas não o quiseram – como o Chelas ou o Fósforos).
O Belenenses chegou à final depois de eliminar o Fósforos (11-0 e 6-0), o Chelas (3-4 e 4-2) e o Luso do Barreiro (meia-final, por 3-0). No jogo derradeiro, disputado a 14 de Junho de 1931, perdemos frente ao Sporting, por 3-1.
Terminou assim de forma estranha a última época completa de José Manuel Soares ao serviço do Belenenses…
Em termos de selecções regionais, Pepe disputou ainda:
Lisboa-Coimbra, 5-2, a 21 de Dezembro de 1930
Porto-Lisboa, 1-0, a 10 de Maio de 1931
Lisboa-Porto militar, 4-2, a 7 de Junho de 1931
Lisboa-Santarém, 2-1, a 5 de Junho de 1931
O adeus
A 19 de Outubro de 1931, já no início da época 1931/32, disputou-se um Belenenses-Sporting para a Taça Serra e Moura, que vencemos por 1 a zero. Este terá sido o último jogo de Pepe. Ironicamente, Serra Moura – então homenageado – era um jogador famoso do Sporting (companheiro de Selecção do Pepe) que havia falecido prematuramente…
E assim voltamos a início deste texto, onde antecipámos a notícia da trágica morte de José Manuel Soares, o “Pepe” – Campeão de Lisboa e de Portugal, atleta olímpico, internacional por 14 vezes (com 7 golos marcados), cerca de 140 jogos feitos pelo Belenenses!
Morreu com 23 anos, por causa de um estúpido acidente - que desta vez, porém, não detalharei aqui. Homero Serpa e Marina Tavares Dias (depois) compilaram rigorosos relatos do episódio, que recomendo.
A memória de um símbolo do Belenenses
Desta vez, fiquemos apenas com a imagem do garoto campeão… mas sempre humilde.
Mesmo chegando a ser um ídolo por esse país fora, nunca abandonou – nem poderia – o seu ofício. Até aos 19 anos trabalhou como torneiro de metais numa oficina ao pé do Mercado de Belém. Depois, provavelmente com a ajuda de Belenenses (o Presidente João Luís de Moura era aviador naval), foi trabalhar para as oficinas do Centro de Aviação Naval do Bom Sucesso (criado pelo belenense Gago Coutinho – que aliás dali partiu com Sacadura Cabral em 1922 para a travessia do Atlântico Sul).
Nasceu pobre e morreu pobre, naquele dia 24 de Outubro, há três quartos de século atrás.
A morte de Pepe em destaque na Imprensa nacional. Em cima, a foto da sua estreia, em 1926 (é o segundo jogador à direita). No texto principal, pode-se ler: "Morreu o Pepe! A notícia, como todas as más notícias, correu célere, levando a desolação a todo o meio desportivo. Vitimado em circunstâncias dolorosamente trágicas, quando contava apenas 22 [23] anos, quando a sua vida resplandecia no máximo da pujança, José Manuel Soares leva consigo a dor inconsolável dos seus parentes, o pranto comovido e a saudades enorme dos seus companheiros de desporto, e a compaixão sincera de todo o público"
Em sinal de luto profundo, a equipa do Belenenses ostentou fumos pretos durante o resto da época de 1931/32. E assim ficaram para a posteridade, com semblantes de tristeza, os que já sem o Pepe conquistaram o quarto campeonato de Lisboa (precisamente o de 1931/32), entretanto a ele dedicado.
Por ocasião do 13º Aniversário do Clube (em 1932) foi descerrado nas Salésias o monumento em honra de José Manuel Soares, um belo e sóbrio baixo-relevo da autoria do famoso mestre-escultor Leopoldo de Almeida. Em 1956, na sequência do abandono forçado das Salésias e após a inauguração do Estádio do Restelo, o monumento foi trasladado para o novo recinto, sendo descerrado na sua nova localização a 1 de Dezembro de 1956, onde ainda hoje o encontramos.
O próprio campo das Salésias, na mesma altura (1932), recebeu o seu nome. Mais tarde, como o melhor recinto do País, passaria a ser conhecido como “Estádio José Manuel Soares”, até ao seu abandono.
Em 1983 o Grupo “Os Mil” instituiu os troféus “Pepe”, para distinguir os mais dedicados e notáveis Belenenses do ano (foram entregues em 28 de Maio de 1983). Iniciativa efémera, porém (seguiram-se os “Amaros”, e depois…).
O conceituado cronista desportivo Severiano Correia descreveu assim José Manuel Soares:
“Era de facto um jogador extraordinário! Irrequieto e franzino, dentro do rectângulo era um elemento que chamava as atenções do público. Chutador por excelência, de uma combatividade extraordinária, constituía perigo para qualquer defesa, por muito valiosa que fosse. Era o menino mimado das gentes de Belém, de tal modo que nem com uma rosa se lhe poderia bater — expressão do seu mestre Artur José Pereira.”
Severo Tiago, também ele jogador do Belenenses, diria décadas mais tarde acerca do Pepe: “Hoje esse fenómeno valeria milhões de contos”.
E digo eu: José Manuel Soares, o nosso “Pepe”, não foi “apenas” um rapaz com má fortuna, um pobre desgraçado que desapareceu deste mundo de forma trágica e comovente. Esse foi o fim absurdo de uma carreira brilhante, a de um rapaz talentoso, dedicado, bondoso, generoso, que com todas essas virtudes conseguiu conquistar gentes pelo País fora (e até pelo estrangeiro).
Foi o primeiro ídolo do futebol português, embora tivesse sucedido a grandes nomes, como Artur José Pereira (cuja fama como jogador dificilmente ultrapassou o meio) e embora faltassem ainda décadas para o aparecimento dos chamados “mass-media”. Contudo, o crescente interesse da imprensa, pela primeira vez, “fabricou” uma autêntica lenda.
Pepe foi quase tudo o que um jogador famoso pode ser. Excelente na sua “arte”, imitado pelos miúdos de todas as terras por onde passava, querido e invejado entre as moças, respeitado pelos colegas, venerado pelos adeptos…
Porém, não era rico, nem vaidoso, mas tinha um amor à camisola como o amor à sua terra: entranhado!
Será coisa do passado, como os vários títulos conquistados. Mas a vontade de vencer, a entrega – em cada jogo, como no “quarto de hora”, ou na sua vida, até ao último dia – são imortais.
Texto inicialmente publicado no blogue Canto Azul ao Sul (2006)
Nota adicional: Um jogador como Pepe não se esquece facilmente, mesmo que haja quem faça por isso. Ainda no outro dia foi notícia o facto de Makukula ter sido o 35º jogador a conseguir marcar na sua estreia pela Selecção. O Maisfutebol, aproveitando a deixa, publicou a lista dos 35, da qual reproduzo os 6 primeiros, pois o nosso Pepe foi precisamente o sexto (enquanto Severo Tiago, também nosso, foi o quinto):
Golos dos estreantes:
Jogo 1. Alberto Augusto (Espanha, 1-3)
Jogo 2. Jaime Gonçalves (Espanha, 1-2)
Jogo 6. João Santos (Checoslováquia, 1-1)
Jogo 8. José Manuel Martins (Hungria, 3-3)
Jogo 8. Severo Tiago (Hungria, 3-3)
Jogo 9. Pepe (França, 4-0)
Faltou referir porém algo que distingue o Pepe dos restantes. É que foi o primeiro marcar não um, mas dois golos no jogo de estreia! Aliás são ainda poucos (três!) os que repetiram tal proeza, ainda menos contra um adversário tão valoroso. São eles:
João Cruz (1938, vitória frente à Hungria), Ben David (1950, derrota frente à Inglaterra) e Francisco Palmeiro, que detém o "record", pois marcou três (1956, frente à Espanha).