Grande Perda para o Belenenses
O Belenenses, sem Homero? Bem longe queria esse dia, e agora mal posso acreditar, embora a doença e a idade o anunciassem para breve. Perda irreparável de um dos maiores vultos do desporto e do jornalismo desportivo português. "Só" isso, já seria orgulho bastante para todos os Belenenses. Mas Homero Serpa não foi apenas um grande homem, amante do desporto, mas um grande, grande Belenense. Direi mesmo que daquela estirpe (que não havia muitos, como o Acácio Rosa) já não há mais.
Não serei dos que melhor conhecia Homero Serpa, bem longe disso, mas neste momento e como homenagem gostaria de dedicar-lhe umas linhas.
Homero Serpa nasceu Belenense, pelo menos duplamente. Nasceu e viveu durante décadas na "sua" Alcolena, espécie de fronteira sem barreiras entre Belém e a Ajuda. Mas também nasceu já filho e neto de Belenenses. O avô Domingos, que tinha talento para as letras, fora "poeta popular por vocação e pessoa infeliz por tradição do bairro" (segundo o próprio Homero). O cuidado na prosa e a admirável riqueza de vocabulário que Homero viria a revelar foram em parte herdados...
O pai e o tio, ainda antes de Homero nascer, já jogavam pelo Belenenses, embora tivessem poucas oportunidades para chegar à primeira equipa, que naquela década de 20 (sobretudo no final) afirmava-se como uma das melhores do País.
Da história do Belenenses, o pouco que Homero não viu, ou foi-lhe transmitido ou estudou com afinco. E isso até ser menino. Porque a partir daí o Belenenses passou a fazer parte do seu quotidiano.
Homero cresceu a ver crescer as Salésias - Estádio José Manuel Soares.
Cedo se apaixonou pelo desporto em geral, mas a Natação foi sempre uma das suas grandes causas. Viveu os tempos do tanque de rega do Jardim Tropical, como pequeno nadador, mas também já como seccionista e treinador.
Protestou, reivindicou, que não havia piscinas, apontando o dedo, sem medo, a Câmara e Governo. Árdua e longa luta que se prolongaria durante décadas. No caso das piscinas do Belenenses, bateu-se por elas até as ver feitas, ao lado de Humberto de Azevedo e Ana Linheiro, entre outros.
Foi dos primeiros a colaborar - recém-feito jornalista - no inovador "Os Belenenses", que era pela primeira vez, em substituição do Boletim Oficial do clube, um verdadeiro jornal, de excelente qualidade, capaz de rivalizar com qualquer outro jornal de grande valor "literário". Homero Serpa, deve-se dizer, foi um dos expoentes de toda uma "escola" de jornalismo desportivo que infelizmente já não existe. Ingressou no jornal "A Bola" em 1955, título este que em tempos chegou a ser considerado o jornal desportivo mais bem escrito do mundo. Com e por causa de Homero (que chegou a ser seu director), entre outros.
Voltando ao Belenenses, se a não inclusão de piscinas no - então - novo complexo desportivo do Restelo, em 1956, terá sido decerto uma desilusão, o nosso novo estádio foi pretexto para a seguinte e maior luta de Homero, talvez a maior e a mais notável. Foi na "crise" dos anos 60, em que o Belenenses, vergado ao peso das dívidas, teve de pedir o resgate do estádio à Câmara Municipal de Lisboa. Esta passou a ser a proprietária, como se previa, mas foi o posterior tratamento que deu ao Belenenses e aos seus desportistas motivo da maior repulsa e indignação. Homero Serpa, uma vez mais sem receios, numa época em que não se podia falar de tudo, muito menos acusar o Estado, não hesitou em defender o seu Clube nos jornais. Denunciou abusos, como o encaixotamento dos nossos troféus, postos na rua. Lembrou e relembrou, de maneira enfática e pungente, toda a história de calvário e entrega do Belenenses em prol do desporto. Isto é, escarrapachou no maior jornal desportivo do País a IMORALIDADE do que estavam a fazer ao Belenenses.
Foi na sequência dessa "guerra" (uma entre tantas), que acabou bem (com a devolução em 1969), que o Belenenses reconheceu devidamente os serviços que Homero tinha prestado e continuava a prestar.
Pouco tempo mais tarde, porém, um insólito. Homero Serpa, já jornalista de renome (sempre no jornal A Bola), treinador do Belenenses (ver a foto acima)! Falhara Meirim (época 70/71) e o Belenenses não sabia a quem recorrer. Homero, que tinha a experiência de centenas de jogos... mas apenas como jornalista!... foi o então escolhido, numa hora de aperto. E não é que saíu bem? Juntamente com Félix Mourinho, evitou-se o descalabro (daqueles como o que aconteceria uma década mais tarde, infelizmente) e a equipa manteve o seu equilíbrio para as épocas seguintes (em 72/73, com o "mítico" Scopelli, seria conseguido um excelente segundo lugar).
Homero continuou, Belenense de primeiríssima ordem e homem de causas. Quando nos quiseram derrubar o pavilhão, esteve lá. Na última luta, vimo-lo de novo, quando o Belenenses se teve de bater no afamado "caso Mateus". Quando muita imprensa e comunicação social se inclinava para soluções dúbias ou aproveitava mesmo para nos pisotear, Homero ergueu de novo a voz em nossa defesa.
Para o desporto em geral, Homero foi dos poucos que não distinguia entre modalidades "ricas" e modalidades "pobres", porque todas tinham, para ele, a sua riqueza. Fazia questão, isso sim, de nunca esquecer as modalidades desprezadas, ESQUECIDAS por quem de direito.
Acompanhou durante anos o ciclismo português, vendo "in loco" como as preferências clubísticas pelos "grandes" - entre os quais o BELENENSES - se propagaram por esse País fora, pelo interior, graças aos esforçados ciclistas... Não havia ainda televisão, os estádios eram longe...
Em termos de obras literárias, como já referiu o Pedro, Homero deixa legado rico e diverso. Há todo o trabalho no jornal A Bola, de décadas, sendo porém de destacar a "Magazine", de que foi responsável, bem como as colunas semanais que vinha escrevendo, mesmo depois da sua reforma.
No Belenenses e sobre o Belenenses ficou o incontornável "Camizola Azul e Cruz ao Peito", livro que contém, a propósito, um excelente texto sobre as "Torres de Belém", para além de tudo o que escreveu para os jornais do Clube. Ainda hoje é frequente encontrar aquele livro nos alfarrabistas...
Homero publicou também, ainda sobre o desporto, uma excelente História do Desporto Português, bem como a já referida (pelo Pedro) biografia de Cândido de Oliveira.
As últimas obras, porém, foram livros mais introspectivos, auto-biográficos, menos relacionados com o desporto. Mas não menos relacionados com o Belenenses. São o "Largo da Memória" (o dito largo que é sito à Alcolena) e "Na estrada". Neles Homero recorda tantos dos interessantes episódios e histórias que tinha para nos contar. Agora já cá não está mais, entre nós, para que pudéssemos continuar...
Que grande pena, que grande perda...